Professora de anatomia fala sobre rotina de trabalho com corpos doados para estudo na UFF e projeto de visitação
Muita gente nem imagina, mas estudantes universitários de diversas áreas do conhecimento precisam manipular cadáveres em laboratórios. No Instituto de Saúde de Nova Friburgo (ISNF), unidade de ensino superior da Universidade Federal Fluminense (UFF), não é diferente. É o que revela a professora Flora Milton, que há 22 anos trabalha com corpos e ‘peças’ (partes de corpos) durante as aulas dos cursos de graduação em Biomedicina, Fonoaudiologia e Odontologia. Enfermeira de formação, ela conta em detalhes como é a rotina no laboratório de anatomia da instituição, explica o processo de obtenção de novos cadáveres e fala sobre o projeto de visitação ao local para alunos do ensino médio.
ASCOM – De que maneira vocês ensinam sobre o corpo humano no laboratório de anatomia?
Flora – Os diferentes sistemas ou partes que compõem o corpo humano são estudados de forma teórica e prática. A parte prática é realizada no Laboratório de Anatomia com uso de modelos sintéticos e, principalmente, cadáveres humanos previamente dissecados. Algumas vezes, também realizamos atividades teórico-práticas no laboratório. Os alunos possuem ainda horários de monitoria destinados ao estudo no laboratório, quando são assessorados por alunos monitores.
ASCOM – Os alunos ficam assustados?
Flora – Eles não ficam assustados, ficam muito curiosos. Geralmente, começamos o conteúdo das disciplinas com a Introdução ao Estudo da Anatomia e, a seguir, estudamos o Sistema Esquelético. De uma forma geral, os alunos ficam ansiosos para chegar aos conteúdos nos quais estudarão nos cadáveres.
ASCOM – E você, nunca teve pesadelos com o seu trabalho não?
Flora – Eu trabalhei muitos anos como enfermeira antes de iniciar a carreira como professora de anatomia e já tive muitos pesadelos, mas não com os meus cadáveres.
Lembro que fiquei muito curiosa quando comecei a fazer a disciplina de anatomia. Nos primeiros dias de aula, havia vários cadáveres cobertos nas bancadas do laboratório e eu ficava curiosa para ver o que tinha embaixo daquelas lonas. Eu acho que todos que sonham em fazer um curso na área na saúde têm um fascínio pelo conhecimento do corpo humano.
ASCOM – Como a UFF consegue esses corpos?
Flora – Os cadáveres e as peças humanas podem chegar às instituições de ensino, como a UFF, por doação do próprio corpo durante a vida ou pela doação de cadáveres considerados não reclamados (antes denominados indigentes).
O acervo de peças humanas que temos hoje no laboratório do ISNF é muito antigo e limitado quanto ao seu número e não há registro de origem ou identificação das mesmas. Essa situação era muito comum há alguns anos. Hoje em dia, todas as peças doadas para as instituições de ensino devem ser registradas e devidamente identificadas.
Há cerca de um ano, iniciamos um processo para obtenção de cadáveres junto ao Instituto Médico Legal (IML) de Nova Friburgo e obtivemos alguns progressos. Atualmente, estamos aguardando o parecer sobre a doação de uma ossada para o laboratório.
ASCOM – Não poderiam estudar em manequins?
Flora – Nós temos alguns modelos anatômicos que utilizamos para complementar os estudos nas peças humanas. Contudo, existem vários trabalhos, com os quais eu concordo, mostrando que alunos e professores consideram o uso de cadáveres a estratégia mais eficaz para o aprendizado. Os modelos anatômicos, por melhor que sejam ou possam parecer, não conseguem reproduzir a textura, a disposição e as relações das estruturas do corpo humano. Além disso, a dissecção, que constitui atividade prática em alguns cursos não pode ser realizada em peças sintéticas.
ASCOM – E como vocês conservam tudo isso? Não tem mau cheiro?
Flora – No nosso laboratório, as peças são conservadas em formol, de modo que o cheiro é somente do formol e não das peças. Existem outros métodos para conservação, como a glicerina, por exemplo, que também impede a deterioração e o odor.
ASCOM – Quanto tempo eles ficam conservados?
Flora – As peças poderiam ficar conservadas no formol indefinidamente. O que leva à deterioração do material é a manipulação, que é inevitável durante os estudos. Nós sempre orientamos que os alunos tenham cuidado no manuseio para manter as peças em bom estado por mais tempo. Contudo, como são muitos alunos e muitas atividades práticas, o desgaste gradativo é inevitável.
Por isso, é muito importante que consigamos a doação de peças para reposição do acervo e continuidade do nosso trabalho.
ASCOM – Se precisar jogar fora, como faz?
Flora – Nós sempre usamos as peças ao máximo possível. Se uma peça não está em bom estado para estudar os músculos, retiramos os músculos para estudar as articulações. Quando não é mais possível estudar as articulações, às vezes, é possível utilizar a peça para estudo dos ossos.
Contudo, quando é preciso descartar, nós entramos em contato com uma empresa especializada que recolhe e realiza a incineração do material que não pode mais ser utilizado.
ASCOM – E o projeto de visitação. Como funciona?
Flora – Eu, juntamente com a professora Thereza Bargut, criamos o projeto de Extensão Universitária denominado ‘Desvendando o Corpo Humano’. Neste projeto, recebemos visitas de alunos de ensino médio, cursos pré-vestibulares e cursos técnicos da área da saúde de Nova Friburgo e região. O laboratório é especialmente organizado para as visitas, que são realizadas em forma de estações temáticas. Em cada bancada do laboratório, são dispostas as peças e é abordado um sistema do corpo. A visita é conduzida pela professora Thereza, por mim e por alunos de graduação dos cursos de Biomedicina, Fonoaudiologia e Odontologia do ISNF.
ASCOM – Qual é o objetivo?
Flora – Nosso objetivo é abrir as portas da universidade para a comunidade, contribuindo para complementar o conteúdo sobre anatomia estudado em sala de aula e também auxiliar na escolha da futura profissão.
Os alunos monitores também têm a oportunidade de interagir com os visitantes, o que contribui não só para a formação profissional, mas também para a conscientização e exercício da cidadania.
ASCOM – Será que essas visitas proporcionam interesse nos estudantes em entrar na UFF?
Flora – Eu tenho certeza que sim. Ao final de cada dia de atividade, os alunos das escolas visitantes respondem um questionário para avaliação do projeto e uma das perguntas é exatamente essa, se a visita despertou o interesse de ingressar em algum curso da UFF. As respostas têm demonstrado que as visitas contribuem tanto para a escolha da futura profissão quanto para o interesse em ingressar nos cursos da UFF.
ASCOM – Você não fica curiosa em saber quem era aquela pessoa, a história dela?
Flora – Fico sim. Quando são cadáveres inteiros, o rosto sempre chama muito a atenção e é comum, em todas as universidades, os alunos colocarem nomes nos cadáveres, às vezes baseados em alguma característica que observam.
Quando eu estava na graduação, havia o cadáver de uma mulher que recebeu o nome de Sueli. Eu não sei quem colocou esse nome, mas todos a chamavam assim.
Quando o cadáver é doado em vida, que é uma situação menos comum, nós temos acesso à história dele. Na Universidade de Brasília (UNB), onde eu trabalhei anteriormente, há o cadáver de um ex-funcionário que doou o corpo em vida para contribuir com a universidade e para a manutenção da qualidade de ensino de anatomia.
ASCOM – Acima de tudo, é preciso ter respeito, não é?
Flora – Sim, muito respeito. É a base do nosso trabalho. Existe até uma oração muito conhecida que trata justamente sobre a vida daqueles que agora, após a morte, estão nos ajudando a compreender o corpo humano, para que possamos preservar vidas.
É a chamada ‘Oração ao Cadáver Desconhecido’. Ela diz assim:
“Ao curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido, lembra-te de que este corpo nasceu do amor de duas almas; cresceu embalado pela fé e esperança daquela que, em seu seio, o agasalhou, sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens; por certo, amou e foi amado e sentiu saudades dos outros que partiram, acalentou um amanhã feliz e, agora, jaz na fria lousa, sem que, por ele, se tivesse derramado uma lágrima sequer, sem que tivesse uma só prece. Seu nome só Deus o sabe, mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir a humanidade que por ele passou indiferente.”
(Karel Rabistansky, 1976)