Projeto inovador desenvolvido por professora da UFF une gamificação, tecnologia e inclusão para o ensino da Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Por Gabriel Guimarães
Fonte site UFF
No Brasil, mais de 90% das crianças surdas nascem em famílias ouvintes que não dominam a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Esse contexto costuma resultar em um acesso tardio à língua de sinais, o que pode comprometer o desenvolvimento pleno da linguagem, da cognição e da socialização dessas crianças. Mas e se a tecnologia pudesse ajudar a encurtar essa distância?
É com esse propósito que a fonoaudióloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Priscila Starosky, desenvolveu o “Hora da Libras”, um aplicativo educativo gamificado, voltado para o desenvolvimento semântico-lexical e fonológico da Libras. O intuito é transformar o desenvolvimento da língua de sinais em uma experiência mais lúdica, visual e interativa. O jogo educativo, segundo a docente, tem grande potencial de transformar a maneira de como as crianças surdas aprendem sua língua materna: “Desde o meu mestrado, venho estudando a relação entre a brincadeira e o desenvolvimento da linguagem, agora, estamos levando essa pesquisa para o mundo digital, criando um jogo que utiliza a Libras como primeira língua.”
O projeto recebeu fomento do CNPq e da FAPERJ, por meio de bolsas de iniciação científica e tecnológica, o que permitiu o avanço das pesquisas e o envolvimento de estudantes em diferentes áreas.
A urgência de uma solução digital
A pandemia de Covid-19 foi um fator determinante para o projeto tomar forma. O distanciamento social, iniciado em 2020, agravou a situação de muitos alunos surdos, que ficaram sem acesso ao ensino e a qualquer suporte em Libras. “A realidade das crianças surdas no interior do Rio de Janeiro era extremamente difícil. Durante a pandemia, muitas famílias que nem conheciam Libras tiveram que se adaptar rapidamente. Nesse contexto, me vi com a minha equipe, tentando buscar alternativas para essas famílias”, explica a professora.
Ela detalha que o atendimento às famílias da região serrana do Rio de Janeiro expôs um problema recorrente: a falta de intérpretes e de suporte educacional adequado. “As crianças estavam em casa, imersas em telas, mas sem nenhum conteúdo em Libras. Isso me fez pensar: como podemos usar a tecnologia para alcançar essas crianças e ensinar Libras de uma forma que fosse realmente acessível e lúdica?”, questiona a professora.
A resposta veio por meio da colaboração com o curso de Sistemas de Informação do CEFET de Nova Friburgo. “Entramos em contato com o CEFET, que tem um curso de Sistemas de Informação, e foi maravilhoso ver a receptividade dos alunos e professores. A parceria resultou na criação de um aplicativo que poderia ser acessado por qualquer pessoa, em qualquer lugar, com apenas um celular e uma conexão à internet”, lembra Priscila.
Além disso, o projeto conta com a participação do curso de Design da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), contribuindo com o desenvolvimento visual e a experiência do usuário dentro do jogo.
A interatividade como chave para o desenvolvimento
A hipótese central do estudo é que a gamificação pode ser uma grande aliada no processo de aquisição linguística, especialmente para a Libras, uma língua visual-espacial. A expectativa é que o jogo auxilie os usuários a expandirem seu vocabulário e sua consciência fonológica em Libras, fortalecendo as bases para a comunicação.
A docente destaca que a principal inovação do aplicativo é que ele foi desenvolvido para ensinar Libras como língua materna, não como tradução do português. “Isso foi um grande desafio, porque a maioria dos recursos existentes foca em ensinar Libras como segunda língua. A nossa proposta é diferente: queremos que a criança surda aprenda sua língua, com seus sinais, a partir da experiência visual, sem depender de outra língua”, explica. O design do jogo, desenvolvido com a ajuda de alunos, foi pensado para engajar as crianças de maneira intuitiva e visual: “As crianças que já usavam a tela, quando passam a ver a Libras representada ali, com interação e resposta imediata, é como se algo se acendesse dentro delas. Elas se reconhecem naquelas imagens, e isso é muito potente”.
Preocupado com o bem-estar das crianças, o projeto também propõe cuidados com o uso adequado e supervisionado da tela, seguindo as recomendações atuais de especialistas sobre tempo de exposição e uso consciente de dispositivos digitais na infância.
A curadoria do conteúdo, como o campo semântico dos animais, por exemplo, foi planejada para garantir que o vocabulário fosse adequado à faixa etária das crianças a partir de três anos. “Com base em estudos, escolhemos começar com um campo semântico que fosse significativo para as crianças, mas a curadoria será ampliada na segunda versão do aplicativo que está prestes a ser lançada”, detalha.
Desafios e representatividade
O desenvolvimento do aplicativo não foi isento de desafios. A fase de testes revelou algumas questões a serem ajustadas, como a adaptação do conteúdo para diferentes faixas etárias. “Ao testar com crianças de 3 a 16 anos, percebemos que o vocabulário inicial, focado nos animais, era perfeito para os mais jovens, mas já não fazia tanto sentido para adolescentes. Por isso, estamos trabalhando em uma versão que amplie esse vocabulário e que tenha mais interatividade para os mais velhos”, conta a professora.
Priscila também compartilha sua visão sobre o impacto potencial do aplicativo: “É muito mais do que ensinar Libras. Estamos oferecendo às crianças surdas a chance de se verem representadas em um mundo digital onde, normalmente, a sua língua não tem espaço”. Essa representatividade é, para ela, uma das principais forças do projeto, que já está ganhando atenção nacional e internacional.
O aplicativo está em fase final de validação, mas já há planos para expandir o uso em escolas públicas e centros de reabilitação. “Queremos que ele seja um recurso acessível para todos. Nosso objetivo é que, uma vez finalizada a validação, o aplicativo esteja disponível para download gratuito e possa ser usado em diversas escolas e comunidades”, conclui.
De acordo com dados parciais obtidos durante o processo de validação do aplicativo, a avaliação de usuários supervisores, que incluem fonoaudiólogos, estagiários e familiares, indicou que as principais áreas de avaliação, como conteúdo, estimulação da aprendizagem e adequação cultural, receberam notas entre “adequado” e “ótimo”. Essas avaliações reforçam a eficácia do aplicativo no desenvolvimento da Língua Brasileira de Sinais, e destacam que a maioria dos aspectos do jogo, como a clareza das telas e o design, contribuíram positivamente para a compreensão das crianças e adolescentes.
Além disso, o trabalho da fonoaudióloga foi aceito para apresentação no Child Language Symposium 2025 (CLS2025), uma conferência internacional dedicada ao estudo do desenvolvimento da linguagem infantil, que ocorrerá em setembro no Reino Unido, ampliando ainda mais o alcance do projeto. Priscila Starosky vê no jogo tanto uma ferramenta pedagógica quanto uma porta para novas formas de ensinar e aprender Libras. Próximo ao Dia Nacional da Libras, 24 de abril, a iniciativa lembra que inclusão se faz com ação concreta, escuta sensível e tecnologia a serviço da transformação social.
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Priscila Starosky possui graduação em Fonoaudiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001), mestrado em Linguística pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2005) e doutorado em Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2011). Professor adjunto do Departamento de Formação Específica em Fonoaudiologia da Universidade Federal Fluminense (Instituto de Saúde de Nova Friburgo, RJ). Desenvolve pesquisas na área da Linguística Aplicada à Fonoaudiologia, dos estudos Sócio-culturais em interação e da Fonoaudiologia Bilíngue para Surdos, tendo como temas o desenvolvimento de linguagem, no contexto da surdez, do estudo da funcionalidade no contexto da deficiência e das práticas discursivas e identitárias que circulam sobre esses temas, principalmente nos campos da saúde e da educação.