
Por Renata Tucci – professora ISNF
renatatucci.blogspot.com
Para nossa família e tantas outras no Brasil e no mundo, a preocupação tem várias cores.
O câncer entrou na minha vida na adolescência, quando acompanhei de perto a doença em sua forma mais agressiva, numa das pessoas que mais amava: um câncer de pâncreas diagnosticado em estágio bem avançado na minha avó materna. Avó que morava comigo, que representava o mais puro afeto e a forma mais estruturante do amor. Eu tinha 15 anos. Lembro exatamente do dia em que ela leu o resultado do ultrassom abdominal. Era setembro de 1991.
Entre o diagnóstico da neoplasia maligna no pâncreas com metástase (quando o câncer se “espalha” para outros órgãos) no fígado e rim até sua morte foram apenas 3 meses. É desolador ver quem amamos passar por essa transformação tão abrupta na forma de viver e morrer. Naquele momento – e até os meus 21 anos – não havia um “fantasma do câncer” rondando minha cabeça. Mas então, minha mãe, aos 44 anos foi diagnosticada com câncer de mama e de tireoide, num intervalo de 3 meses de diferença entre um e outro. Já havia cursado as disciplinas de Patologia Geral e Patologia Oral da Faculdade de Odontologia, era estagiária de Patologia Geral, tinha aprofundado os meus estudos nas neoplasias. Tudo fez um sentido diferente a partir dali.
Meus exames começaram a ser feitos muito antecipadamente. Desde os meus 26 anos venho sendo monitorada mais de perto realizando exames preventivos nas mamas. Até então, a questão hereditária do câncer ainda não tinha sido efetivamente considerada. Porém, em 2005 a irmã mais velha da minha mãe também foi diagnosticada com câncer de mama, e um ano depois a irmã mais nova. As três irmãs diagnosticadas com câncer de mama. Nesse momento, independentemente de terem feito ou não algum exame genético para confirmar alguma mutação, na minha cabeça já era fato.
Estamos no outubro rosa, mês de conscientização e prevenção do câncer de mama, então vale aqui informações: Segundo o Instituto Nacional do Câncer – INCA, existem fatores que aumentam o risco do aparecimento do câncer de mama. São eles: fatores de risco ambientais e comportamentais (sedentarismo, consumo de álcool, exposição frequente aos raios X, obesidade); fatores da história reprodutiva e hormonal (idade da menarca, não ter tido filhos, primeira gravidez após os 30 anos; menopausa após os 55 anos, reposição hormonal por mais de 5 anos) e fatores genéticos e hereditários associados (casos de câncer de mama na família, principalmente antes dos 50 anos, história familiar de câncer de mama em homens, história familiar de câncer de ovário e alteração genética, especialmente nos genes BRCA1 e BRCA2).
Apesar da possibilidade de ocorrência de mutação, o câncer de mama de caráter genético/hereditário corresponde a apenas de 5% a 10% do total de casos da doença. O conteúdo do site do INCA é muito didático, vale a pena conferir.
Passei anos e anos da minha vida achando que teríamos a mutação em um desses genes, e tinha muita dúvida se faria ou não um exame genético que confirmasse efetivamente a presença dela. Outra dúvida que permeava meus pensamentos era se um dia faria ou não a mastectomia profilática (retirada das duas mamas antes mesmo de ter câncer). Desde muito nova ouvi de médicos que o melhor seria remover as mamas. Antes de ter engravidado, antes de ter filhos, antes de amamentar, coisas essas que muito desejava vivenciar. Preferi continuar fazendo uma rígida prevenção.
Os anos foram passando, exames preventivos de 6 em 6 meses, uma das tias com câncer nas duas mamas, a outra tia com dois tumores primários (ou seja, independentes um do outro) na mesma mama. Depois de tantas ocorrências, uma delas resolveu iniciar a pesquisa genética. As três irmãs fizeram. E, para surpresa geral, não carregavam a mutação nem no BRCA1, nem no BRCA2. Outros genes passaram a ser pesquisados. Foi então que descobriram uma mutação específica no gene TP53 (um dos genes mais estudados no desenvolvimento de vários cânceres humanos), sendo diagnosticadas com a Síndrome de Li-Fraumeni, O médico geneticista indicou que toda a família fosse testada. Resolvi fazer o meu exame.
A pioneira no estudo e caracterização da Síndrome de Li-Fraumeni no Brasil é a médica Maria Isabel Achatz, hoje diretora do Departamento de Oncogenética do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. Outros pesquisadores brasileiros vêm desenvolvendo uma série de estudos de grande relevância mundial, pois o Brasil é um dos países que apresentam maior incidência de uma mutação específica associada a essa síndrome, chamada variante patogênica R337H do TP53. Pacientes portadores de síndrome de Li-Fraumeni têm uma chance muito maior de desenvolver câncer durante a vida, quando comparados a indivíduos que não têm a mutação no TP53. Os tipos de câncer mais característicos associados à síndrome são: o câncer de mama antes dos 35 anos, os chamados sarcomas ósseos ou de tecidos moles antes dos 45 anos, leucemias, tumores nas glândulas adrenais (que ficam acima dos rins, principalmente em crianças) e no sistema nervoso central.
Dra. Maria Isabel disse numa entrevista: “Ainda não temos como impedir o aparecimento de tumores, mas podemos fazer o diagnóstico precoce”. O diagnóstico precoce é baseado num programa especial de prevenção, com a realização de exames periódicos anuais, seguindo um protocolo mundialmente estabelecido.
Minha mãe e minhas tias, que sempre se preocuparam muito com a prevenção, estão todas bem, vivas. Minha mãe há 23 anos sem ter câncer. Minhas tias, lutando bravamente a cada novo aparecimento de lesões malignas, removeram suas mamas. Em comum, sentem muita vontade de viver. Pontuo aqui, neste momento, a fundamental importância de programas permanentes de diagnóstico precoce e prevenção do câncer. De todos os tipos. O outubro rosa é fundamental para chamar a atenção da população, mas o trabalho deve continuar ininterruptamente.
Voltamos ao meu exame. Tinha 50% de chance de ter a mutação. Uma verdadeira loteria genética…
Apesar de rapidamente ter acreditado que poderia escapar da loteria, recebi como herança a mutação. No fundo no fundo, há anos já me considero parte das “mutantes”, como carinhosamente nos chamamos agora. Os exames preventivos vão aumentar, pois ainda não tive câncer. Pode ser que não tenha, mas a chances são grandes. Como adendo, ganhei uma outra mutação, em um gene descoberto recentemente por agir em conjunto com o TP53. Portadores das duas mutações, como eu tenho, parecem ter a chance maior de desenvolvimento do câncer. A pesquisa que descreve a presença da mutação do gene XAF1 na Síndrome de Li-Fraumeni é recente, desse ano, e foi conduzido pela pesquisadora brasileira Emilia Modolo Pinto. Deixarei as referências para quem quiser ler no final do texto.
Esse ano faço 44 anos, idade que minha mãe teve o diagnóstico de câncer pela primeira vez. São vários os fantasmas me rondando e não posso deixá-los me dominar. Uma amiga me disse: “você não pode se sentir como uma bomba relógio que está prestes a explodir”. Fato. Os medos são muitos, mas de uma forma geral o diagnóstico da síndrome acabou me jogando para um “carpe diem”. Tenho dias ruins e outros melhores, mas penso que não devo perder tempo com coisas que não importam e sentimentos que não fazem bem, pois a qualquer momento “eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá”.
Tenho agora a difícil tarefa de fazer o teste no meu filho, que tem 6 anos. Dentre tudo que pode acontecer, o que mais me assombra é a possibilidade de vê-lo passar pelo sofrimento de um tratamento oncológico. A minha vida prezo muito, pois amo viver apesar de todos os percalços que já passei. Continuo desejando, tenho muito a realizar, quero escrever livros, quero ler muito, quero conhecer lugares, quero me emocionar, me deixar afetar, quero amar e mais amar. Prezo a minha vida ainda mais depois do nascimento do meu filho; quero vê-lo crescer. Gostaria muito de estar perto, de ser o suporte necessário, o lugar onde ele poderá sempre voltar, o afeto acolhedor e a força propulsora para vê-lo voar. A vida dele é indescritível. Amo mais do que as poeiras cósmicas do universo sideral da Via Láctea (ele sempre ri com essa brincadeira). Espero que essa herança genética eu não tenha transmitido a ele.
Ainda não conversei com o médico geneticista sobre os meus exames e sobre o teste do meu filho, mas seguirei o que a medicina tem de melhor a oferecer em casos como os nossos. Minha tia mais velha, após o diagnóstico da síndrome, teve recentemente diagnosticado um câncer de esôfago em estágio inicial. Fará a cirurgia para remoção do tumor maligno via endoscopia. Daí a importância de todo rastreamento realizado nos pacientes portadores da síndrome, pois o diagnóstico precoce do câncer aumenta muito o índice de sobrevida e qualidade de vida dos indivíduos.
Aproveito o outubro rosa para prestar minha solidariedade a todas as mulheres (e homens) que já vivenciaram o câncer de mama. Prevenção e diagnóstico precoce são a chave para os bons resultados quando nos referimos ao câncer. Para todas as pessoas portadoras da Síndrome de Li-Fraumeni, que assim como eu e minha família, lutam diariamente contra o “fantasma do câncer”, eu desejo uma vida interessante, vivida plenamente. Que venham as dores e as alegrias, os medos e as vitórias, as angústias e os afetos.
Deixo aqui algumas referências de algumas reportagens encontradas na internet e de artigos científicos para quem se interessar mais pelo assunto:
- Costa, Camila. Como um tropeiro do século 18 espalhou mutação genética rara que causa câncer no Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43791027#:~:text=A%20S%C3%ADndrome%20de%20Li%2DFraumeni,provocar%20a%20morte%20desta%20c%C3%A9lula. Acesso em: 7 de out. 2020.
- INCA – Disponível em: www.inca.gov.br . Acesso em 7 de out. 2020.
- Segatto, C. Câncer hereditário: a descoberta que pode ajudar famílias com Li-Fraumeni. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/colunas/cristiane-segatto/2020/07/01/cancer-hereditario-a-descoberta-que-pode-ajudar-familias-com-li-fraumeni.htm. Acesso em: 7 de out.2020.
- Achatz, M.I.W. et al. Highly prevalent TP53 mutation predisposing to many cancers in the Brazilian population: a case for newborn screening? Lancet Oncology. v. 10, n. 9, p. 920-5. set. 2010
- Pinto EM et al. XAF1 as a modifier of p53 function and cancer susceptibility. Sci Adv. 2020;6(26):eaba323
Renata Tucci
Mestre e Doutora em Patologia Bucal pela FO-USP.
Professora Adjunta de Patologia Geral e Oral do Instituto de Saúde de Nova Friburgo da Universidade Federal Fluminense – UFF
Aluna de graduação do Curso de Letras – Língua Portuguesa da Universidade Estácio de Sá.