Programa oferece atendimento gratuito para pessoas trans e pesquisa a experiência da comunidade com os serviços de saúde
Por Assessoria de Imprensa Reitoria
Visando promover atendimento odontológico gratuito e de qualidade para a população transgênero, que inclui pessoas trans, travestis e não-binárias, o Instituto de Saúde de Nova Friburgo da Universidade Federal Fluminense (ISNF-UFF), em parceria com o Centro de Cidadania LGBT Hanna Suzart, realiza o projeto de extensão “Rede Visibiliza UFF: Produzindo vínculo, visibilidade e acesso à saúde bucal a pessoas trans”. A iniciativa vai ao encontro do avanço de políticas públicas e da oferta de serviços de saúde voltados à comunidade LGBTQIAPN+.
O projeto partiu de uma pesquisa sobre as experiências da população trans em relação ao acesso e ao cuidado no Sistema Único de Saúde (SUS). “Percebemos que esse grupo passa por todo tipo de vulnerabilidade, com a falta de acesso à saúde bucal, baixa expectativa de vida, sujeito a todo tipo de violência e submetido a políticas públicas insuficientes e muitas vezes ineficazes”, traz a professora do curso de Odontologia e coordenadora do projeto, Flávia Maia Silveira. Do incômodo com as questões encontradas, nasceu o programa Rede Visibiliza UFF, com a participação do aluno Vitor Lisbôa da Silva, atualmente vice-coordenador da iniciativa. “Apesar de estar ligado ao acesso à saúde bucal, ampliamos as ações do projeto e agora contamos com alunos dos três cursos do ISNF: Odontologia, Biomedicina e Fonoaudiologia”, complementa a docente.
No primeiro momento, os pacientes são atendidos pelo Centro de Cidadania e depois encaminhados para o ISNF, mas muitos buscam o projeto espontaneamente, pelas redes sociais ou por indicação de conhecidos. Silveira explica que um desafio diário enfrentado pelo Hanna Suzart é dar assistência, acolhimento e orientação para a população LGBTQIAPN+ de modo geral que busca acesso às políticas públicas existentes para a comunidade. “É um trabalho muito importante, que aproveitamos a parceria também para fazer oficinas de sensibilização na universidade”.
Assim, além dos atendimentos, que acontecem na Clínica Odontológica do ISNF, o projeto também atua com medidas educativas e rodas de conversa para o público da universidade, com o intuito de sensibilizar e mobilizar a comunidade acadêmica. “Fazemos esse trabalho interno para trazer esclarecimento aos alunos e servidores sobre a importância do acolhimento que o projeto proporciona. Nesse sentido de educar as pessoas, também estamos organizando um livro com orientações para profissionais de saúde”. Paralelamente, a pesquisa “Análise das experiências de pessoas trans com o Sistema Único de Saúde acerca do acesso, do acolhimento e da resolutividade de suas demandas”, conduzida pela professora, avalia desde aspectos como o acesso ao serviço básico de atendimento à saúde até questões mais específicas, como o tempo de espera por cirurgias de redesignação de gênero e do acesso à terapia hormonal. O estudo é conduzido por alunos da graduação junto à Silveira e foi contemplado pelo edital de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
Estudante do ensino médio, Artha Santos Blaudt Martins, que se identifica como pessoa não-binária, comenta que constantemente enfrenta dificuldades para encontrar um espaço que ofereça o tratamento que busca. Elu conta que começou sua busca no começo de 2023 e passou por experiências desagradáveis ao longo do caminho: “Passei por um clínico geral, muito atencioso, mesmo não entendendo meu caso, e que me encaminhou para uma endocrinologista. Ela até tentou me ajudar, mas não seguiu com o tratamento hormonal porque não entendia do assunto. Fui encaminhade para outra endocrinologista, muito antipática. Mesmo não entendendo sobre pessoas trans, ela não soube fazer o mínimo, que é ter empatia com alguém em busca de ajuda”.
Silva explica que a maioria dos pacientes registra a falta de experiências positivas com profissionais de saúde, inclusive com casos de discriminação que começam na recepção ou na entrega de documentos. “Alguns artigos mostram que às vezes um médico nega atendimento porque o nome que está no papel é diferente do nome que a pessoa apresenta”. Atento a essas e outras questões, o projeto promove ações para mudar este cenário. No prontuário, por exemplo, constam os campos “nome social” e “identidade de gênero”.
Assim como Artha, Gabriela Fernanda Dias Gomes, paciente trans atendida pela Rede Visibiliza, compartilha que em diversas vezes foi chamada pelo nome “morto” por não ter os documentos alterados. “Evitei bastante buscar os serviços de saúde porque são situações de constrangimento muito difíceis, mas o atendimento na Rede Visibiliza UFF foi ótimo, fui tratada muito bem e com muito respeito”, comenta. Ela reforça que o atendimento oferecido pelo projeto é essencial para a comunidade transgênero: “Muitas pessoas não têm acesso à rede de saúde e a uma clínica odontológica por falta de condições financeiras, e lá (na Clínica Odontológica do ISNF) somos respeitadas e entendidas como merecemos”.
Atendimento voltado para a comunidade trans
A docente e pesquisadora da UFF defende que pensar o acesso das comunidades trans, travesti e não-binária à saúde é importante porque muitas vezes essas comunidades deixam de buscar os serviços de saúde por medo de serem mal atendidas ou discriminadas. Quanto à saúde bucal, Silveira identifica reflexos das agressões sofridas por esse grupo. “Vemos que há muitas sequelas de violência, então quase todos os nossos pacientes aparecem com fratura dentária ou outras consequências de violência”.
A professora destaca ainda que as condições de saúde bucal da população trans costumam ser muito piores do que aquelas da população cisgênero atendida nas clínicas da universidade, situação que se dá não só pela falta de acesso ao serviço odontológico, mas também por outras questões anteriores, como a expulsão precoce de casa, a consequente evasão escolar e a dificuldade em se inserir no mercado de trabalho e ter acesso aos serviços de saúde. Silveira acrescenta que “é horrível que a sociedade às vezes liga a população trans diretamente à prostituição, mas as pessoas que se prostituem fazem isso por conta da sociedade e da família, aspectos que também planejamos trabalhar na nossa pesquisa”.
Nicolas Alves Rascov, homem trans e aluno do curso de Biomedicina do ISNF-UFF, traz que várias questões precisam ser consideradas ao atender uma pessoa trans e muitas delas são ignoradas pela falta de pesquisas e de interesse da academia e dos prestadores de serviço em geral. Por essa razão, o projeto também mantém uma pesquisa para entender a realidade da comunidade em relação à saúde. “Muitas das pessoas trans usam hormônios, que têm impacto na estrutura óssea, além de várias outras mudanças físicas no geral, e isso precisa ser estudado porque, quando você não entende as particularidades de uma população, não consegue promover a saúde de forma integral”, afirma. “Além disso, muitas pessoas também buscam o atendimento fonoaudiológico pelas mudanças de voz que acontecem durante a harmonização e também para alterar a voz para ficar mais próxima daquela que desejam ter”.
Quanto ao estudo em andamento, outro aspecto ressaltado pela professora é que, a partir dos resultados da pesquisa, será possível cobrar por políticas públicas mais eficazes. Para poder fazer essa exigência, ela afirma que primeiro “é preciso entender e mostrar o que está acontecendo, por isso a pesquisa é muito importante. Começamos com o projeto de extensão oferecendo atendimento, mas a pesquisa é fundamental para conseguirmos mostrar a realidade, pois, com argumentos científicos, fica muito mais difícil refutar”.
Já em relação ao projeto, Artha reforça que muitas pessoas trans se sentem desamparadas ou pela falta de informação, ou pela falta de profissionais capacitados e compartilha que vê o projeto como uma forma de “abrir portas” tanto para as pessoas trans serem vistas e sentirem que são importantes quanto para os futuros profissionais da área da saúde entenderem que existe uma enorme diversidade de pessoas. “É difícil lidar com cada uma delas, mas é preciso entender que não estão lidando apenas com o corpo, mas com uma pessoa completa”.
Atualmente, cerca de 20 alunos vinculados integram a Rede Visibiliza UFF. Além dos graduandos responsáveis pelos atendimentos, geralmente do último período do curso de Odontologia, o projeto também conta com alunos voluntários responsáveis por outras atividades administrativas, como as publicações no perfil no Instagram da Rede. Pessoas tanto de Nova Friburgo quanto de cidades vizinhas são atendidas pelo projeto que não conta com lista de espera. “Conseguimos atender todos, tanto as pessoas encaminhadas pelo Centro de Cidadania LGBT Hanna Suzart quanto as que espontaneamente nos procuraram. O público que tivemos conseguimos atender”, celebra Silveira.
Flávia Maia Silveira possui graduação em Odontologia, mestrado e doutorado em Odontologia Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui especialização em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais e atualmente é professora da UFF, no Instituto de Saúde de Nova Friburgo (ISNF), e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Odontologia do ISNF.
Vitor Lisbôa da Silva é aluno de graduação do curso de Odontologia na Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Laboratório de Microbiologia Experimental e Aplicada do Instituto de Saúde de Nova Friburgo (ISNF).